Não deixa marido nem filhos
A morbidez de achar alento na falta e a esquisitice de achar que a vida só existe em prol de determinadas conquistas.
Cartas Para Lugar Nenhum é a newsletter de JP Lima. O nome vem da ideia de que newsletters podem chegar a pessoas que eu nunca imaginaria que as leriam . Também tem um pouco a ver com esse processo meio solitário e escrever e não saber exatamente para quem.
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Nesse último mês entre para um clube do livro/de estudos sobre não-monogamia. Eu sei, NM é tipo vegano ou crossfiteiro, mas a vida é o que é e eu vou falar do que me interessa. Estamos lendo o Descolonizando Afetos da Genipapos esse mês, e essa leitura me pegou muito no ponto em que fala sobre a centralidade de papéis familiares e como isso tende a nos prender em alguns lugares incômodos.
A ideia da centralidade da família existe num lugar muito específico na nossa sociedade, e quase sempre isso se refere a famílias de sangue e/ou casamento. A expectativa de que quem nasceu da mesma carne que você sempre estará do seu lado, e que os vínculos de sangue e matrimônio são e sempre serão os mais importantes gera um monte de frustrações e pauta para sessões de terapia. Nós mudamos de prioridades e nossas relações se transformam durante nossas vidas.
Ninguém deveria sentir que precisa amar as mesmas pessoas, da mesma forma, durante a vida toda.
Quando nos vemos presos e definidos pelas relações românticas e sexuais, ainda mais perante uma sociedade que ama estereotipar e atribuir valor moral (alô, cristianismo) à forma como amamos, quem amamos e como apresentamos isso em público, estamos tendo de ceder grande parte da nossa autonomia para agradar instituições que muitas vezes nem respeitamos tanto assim. O “pega mal” se torna uma censura. A celebração do carinho e afeição vira uma obrigação. E isso nos acompanha, até mesmo no além vida.
Explico: no mês passado morreu uma atriz que atuou em uma das minhas séries favoritas, ela era uma pessoa criativa, carismática, dedicada. Era bem amada pelos que trabalharam com ela e faleceu beirando os 40 anos, ainda bastante jovem.
No texto que faz as vezes de obituário, publicado em diversos sites de entretenimento, há o costume de encerrar falando da família que “permanece”. No caso dessa atriz, me deparei com:
A atriz não era casada e não deixou filhos.
Obituários são coisas difíceis de escrever, eu já escrevi alguns (tema para outra edição), mas o que me cutucou realmente foi essa frase final. É padrão, é típica, mas é como se fosse uma última forma de dizer a quem lê quanto essa pessoa importava no nível pessoal. Se deixou esposo e quatro filhos eles devem estar sofrendo muito, se não deixou “menos mal”. Como se o impacto da vida de uma pessoa pudesse ser medido apenas em “casou e se reproduziu”. Bastante bíblico, não é?
Some isso à loucura de produção e medo de substituição por IA, crises econômicas e maníacos desregulados no comando de grandes potências mundiais que vivemos e aí entra mais uma obrigação. Além do “acorde cedo, estude IA, trabalhe em dois empregos, vá à academia, estude mais, ache tempo para ter um hobby longe das telas”, voltamos a ser assombrados com a ideia de que a vida sem um casamento e sem prole não vale muito. E isso me deixa puto.
Nós somos, sempre, bombardeados por expectativas irreais, cobranças absurdas, e isso eu digo do alto das minhas vantagens e imunidades a dores que vêm com o pacote homem cis branco. Há pessoas para quem isso é, claramente, muito pior. Mas o que me incomoda ainda mais é que não basta dizerem o quanto vale nosso trabalho, cuspirem na cara de prerrogativas democráticas, a gente ainda tem de ter a importância de toda nossa vida minimizada porque não nos adequamos à norma de relações e modelo de família esperado.
Honestamente? É um trabalho do caralho mas nós, pessoas desviantes da norma, temos de seguir lutando e exigindo mais respeito. Porque foda-se quem diz que só a família nuclear cristã vale alguma coisa.
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Abraços, um bom fim de ano, e até a próxima.
JP
a expectativa padrão é uma merda. Em tempo, nessa toada deveríamos ter um monumento ao Mc Catra.